sexta-feira, outubro 21, 2016

A morte da Morte

A morte não é um tema popular. Preferimos não pensar muito nisso. Aquilo que talvez mais choca a nossa alienada cultura imediatista é a morte. A morte perturba. Ela infunde terror e semeia o desespero da ausência para quem fica. Independentemente das crenças e práticas, por mais previsível que seja, a morte sempre alvoroça o mundo dos vivos. Ainda que se procure fazer tudo para a esquecer, retardar e ocultar, um dia a morte bate-nos à porta.

Aspirações e sonhos são interrompidos a crianças e jovens. Casais são separados. Ricos e pobres, cientistas brilhantes e artistas talentosos, sábios e ignorantes, fortes e fracos, todos sem excepção, são ceifados pela tenebrosa gadanha mortal. A morte escancara a nossa finitude e ri-se dos tolos distraídos. Perante a inevitabilidade da morte alguns tentam apressá-la. Uns suicidam-se, outros fenecem lentamente. Todos partem.
Mas a morte, talvez sem nunca o saber e imaginar - porque se há coisa que a morte não consegue fazer é sonhar -, também pode fazer sobressair a vida. Nos contornos sombrios do vale da Morte é possível vislumbrar os dedos luminosos da Vida. O fim pode ser o princípio.

A Bíblia ensina que a morte humana é o resultado do pecado humano: “Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram” (Romanos 5:12). Morremos porque somos pecadores. Deus tinha avisado Adão e Eva que a desobediência seria fatal (Génesis 2:17; 3:3). A morte espalhou-se no universo. Neste cenário mortal, Deus vai intervir e resolver o castigo da morte, com a morte. Num acto de graça e bondade, Deus envia o seu Filho Jesus para morrer sacrificialmente pelo pecado da humanidade. “Onde o pecado abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Romanos 5:21).

No seu livro Milagres, C. S. Lewis contrasta dois aspectos da morte: "Por um lado, a Morte é o triunfo de Satanás, a punição pela Queda e o último inimigo. Cristo derramou lágrimas no túmulo de Lázaro e suou sangue no Getsémani. A Vida das vidas que estava nEle não odiou menos do que nós este castigo cruel – odiou-o ainda mais. Por outro lado, só aquele que perde a própria vida a salvará. Somos baptizados na morte de Cristo, e ela é o remédio para a Queda. Na verdade, a morte é o que alguns indivíduos hoje chamam de ‘ambivalente’. Ela é a grande arma de Satanás e também a grande arma de Deus. É sagrada e profana. A nossa suprema desgraça e a nossa única esperança, aquilo que Cristo veio conquistar e o meio pelo qual Ele efectuou a conquista." Na agenda de Deus, a morte é o último inimigo do homem a ser completamente erradicado, mas a morte também é o remédio divino.

Antes de morrer, José Saramago deu uma entrevista ao Courier Internacional, aquando do lançamento do seu livro As intermitências da morte, onde afirmou que “O problema da Igreja é que precisa da morte para viver. Sem morte não poderia haver Igreja porque não haveria ressurreição. As religiões cristãs alimentam-se da morte.” Saramago aqui não se enganou muito. Na realidade, os verdadeiros cristãos sabem que a morte e a ressurreição de Cristo são os pilares da sua fé e vida. Jesus morreu e ressuscitou para nos salvar e para nos libertar do medo da morte (Hebreus 2:14-15). Em vez de tentarmos agarrar o breve vapor desta vida e vivendo aterrorizados com a morte, apeguemo-nos ao valor eterno da morte de Cristo.

Henri Nouwen conta que viu num cemitério da Irlanda do Norte um epitáfio numa cruz de madeira com a frase: "Onde a morte é declarada, a esperança encontra as suas raízes." Sim, há Vida para além da vida. A morte treme e sucumbe perante a cruz ensanguentada. A morte sabe que também morreu ali. A única esperança na vida é a paz e a vitória que brotam do túmulo vazio do Cristo. Deus matou a morte. A morte já não nos mete medo. Está morta.

Jorge Oliveira
(Crónica publicada na edição nº 163 - Outubro-Dezembro 2016, na Revista Refrigério)

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